Filme: Precisamos Falar sobre o Kevin
“O filme é a adaptação do livro
homônimo de Lionel Shriver. Quem o leu não esquece o soco no estômago. É sobre
um garoto perverso que termina por promover uma chacina na escola. A história é
narrada pela mãe, que conta sobre o susto que levou com o nascimento
daquele filho que ela não identificava como uma bênção, sobre sua enorme
dificuldade em contornar conflitos e a descoberta de que não é nada
simples formar uma família feliz.”, comenta a Psicóloga e Gestalt-Terapeuta de
Ilha de Governador, RJ, Patricia Simone Santos.
São inúmeras as questões suscitadas no decorrer do filme. São os pais os culpados pela conduta violenta de seus filhos adolescentes? O que acontece quando "bons" pais possuem filhos "ruins"? O que é a Psicopatia? Significa que eles não são, de fato, tão bons quanto haviam imaginado? Trata-se de uma desconstrução do mito da competência materna. Orientações
bem-intencionadas podem não adiantar, o amor pode não ser bem
transmitido, as atitudes podem não servir de exemplo. Existe algo
tão influente quanto tudo isso: a dor interna. Ela contamina, ela
comunica, ela desgraçadamente dá o tom das relações. O livro, tanto
quanto o filme, são violentos pela brutalidade dos sentimentos que ficam trancafiados.
Uma cena importante salientar por seu caráter simbólico e angustiante do filme mostra, essa mãe com o
filho ainda bebê — uma criança que não parava de chorar um minuto
sequer —, passeia por uma rua movimentada da cidade com o bebê
no carrinho. Ele chora,vem chorando há dias. A mãe não dorme, não vive,
apenas escuta o choro incessante da criança. Até que ela passa por
trabalhadores que estão fazendo reparos em bueiros no meio da rua.
Trabalho pesado, barulhento, infernal. Ela sai da calçada com o carrinho
e chega bem perto do trabalhador que está perfurando o asfalto com uma
britadeira. Bem perto mesmo. Estaciona o carrinho ao lado da britadeira que faz um
barulho torturante. Close em seu rosto: por um instante, ela tem o
conforto de trocar o choro do filho por outro ruído que, aos seus
ouvidos, soa como um solo de flauta. O breve enquadramento daquela
mulher com o carrinho no meio da rua e o homem trabalhando com a
britadeira a seu lado é um mix de desespero e poesia como raramente (eu, que pessoalmente sou cinéfila desde a infância), vi no cinema. Não é que a mãe de Kevin não aguentasse mais o barulho do choro: ela não
aguentava mais o barulho da própria culpa por ser incapaz de cumprir o
papel de mãe amorosa e abnegada daquele pequeno "demônio de fraldas".
Um filme perturbador, não apenas pela história em si mas pela
inexistência de um motivo, seja ele qual for. Apenas a constatação de
que a mente humana, que pode produzir tantas maravilhas, é também capaz
das maiores atrocidades. Se faz presente uma simbologia clara à Eva bíblica, em uma analogia cristã à “mãe de todos
nós”, embora o filme não se embrenhe no campo religioso, a personagem
carrega uma culpa dilacerante como uma mãe e como um ser humano prestes a
explodir, como se sobreviver já se tratasse de um esforço superior ao
que poucos seriam capazes de suportar após o grande trauma que a assola. Sua penitência será conviver com Kevin. Não há justificativa para o comportamento do filho. Não há grandes traumas.
Mentiroso, manipulador, calculista, só interessado única e exclusivamente em seu próprio prazer, Kevin é o pesadelo em forma de criança/adolescente; é malcriado,
mimado, dissimulado, grosseiro. Kevin é um caso sério, realmente
precisamos falar sobre ele. Trata-se de um psicopata, e assim seria mesmo se fosse filho de uma mulher preparada para ser mãe,
do tipo que vê na maternidade a realização de um sonho (e não é). A
tese do filme de Ramsay, se há algo do tipo, é que a recusa de Eva
Katchadourian ao papel de mãe funda as bases do ato horrendo que o filho
comete - e a responsabilidade de tal ato, o assassinato de inocentes,
acaba recaindo sobre ela na forma de um castigo. Acaba por ser no perdão
ao filho e no pagamento de seus pecados com a própria existência que
ela encontra o perdão a si mesma.
Melanie Klein traz a ideia da coexistência de amor e ódio na psique humana, o psicopata sofreu a perda do objeto primário de amor quando mãe e bebê ainda formavam uma unidade. Esta perda aconteceria na posição esquizo-paranóide, nos primórdios do processo de separação entre mãe e bebê. Portanto, o bebê, ao perder a mãe (objeto primário de amor), perdeu também parte de si. É isto que o psicopata busca reencontrar incessantemente.
"A tese que emerge é que os pais podem obter gratificação vicariante de seus próprios impulsos proibidos e mal-integrados pela atuação (acting out) da criança, por meio de uma permissividade inconsciente ou inconsistência no trato com a criança nestas esferas do comportamento. As lacunas do superego da criança corresponderiam a defeitos similares [inconscientes] do superego dos pais, que, por sua vez, se originou da permissividade consciente ou inconsciente de seus pais." (Adelaide Johnson e S.A. Szurek)
Em 1995 o DSM-IV publicou a atualização em vigor, e segundo os dados a prevalência é de 3% em homens e 1% em mulheres na comunidade, e 3% a 30% presentes na população clínica. Segundo a apercepção fenomenológica: Falta de empatia (insensíveis e cínicos, desprezam os sentimentos, direitos e sofrimentos alheios). Auto-estima enfatuada (rei na barriga), arrogante ('o trabalho comum não está à minha altura'), opiniáticos, auto-suficientes, vaidosos. Encanto superficial e não sincero, volúveis, facilidade com palavras (usam termos técnicos que impressionam). Histórico de múltiplos parceiros sexuais. Pai/mãe irresponsável.
Em propostas, A Técnica de Rorschach, que consiste na apresentação de cartões com "borrões de tinta", solicitando respostas verbais do examinando sobre aquilo que "vê" neles, é um instrumento bastante valorizado no meio forense. Uma proposta de utilização deste instrumento associado ao PMK (psicodiagnóstico miocinético), fornece indícios quanto à impulsividade e a direção da agressividade (hetero ou auto-agressividade). Pope e Scott (1967), autores americanos, correlacionam aspectos do teste de Rorschach e do TAT enfocando: 1) pouca ligação com as pessoas; 2) impulsividade do comportamento e tendência à atuação. Garcia Arzeno, psicóloga argentina que trabalhou com Ocampo (1979), propõe, em seu trabalho publicado em 1995, a aplicação do Questionário Desiderativo, citando alguns indicadores para examinandos psicopatas. O Desiderativo é uma prova de fácil aplicação. Como seu próprio nome diz, está relacionada com "desejo", "aspiração". A sua aplicação consiste em perguntar ao sujeito o que ele mais gostaria de ser se não fosse pessoa e solicita-se a explicação do porquê. Em seguida, pergunta-se mais duas vezes até conseguir três escolhas correspondentes ao reino animal, ao reino vegetal e a algo inanimado. Pergunta-se ao sujeito, posteriormente, o que, ao contrário, menos gostaria de ser e a razão, obtendo-se três escolhas correspondentes aos três reinos acima citados. Registram-se os tempos de reação (quanto tempo demora para dar a resposta), os comentários prévios, posteriores ou entremeados com as respostas. Também seus gestos e o comportamento geral. A compreensão do teste, na proposta de Garcia, está associada à teoria psicanalítica kleiniana de que cada resposta almeja a um item específico.
O psicopata faz o outro sentir o que não pode, ou, ao inverso, utiliza do que conclui que o outro sente para preencher uma lacuna em si próprio. Em termos de questões éticas e suas implicações sociais, entende-se que lidar com o psicopata é lidar com a problemática ética da conduta. Diante de um indivíduo que parece encarnar o "mal absoluto", ficamos frente a frente com as nossas próprias tendências psicopáticas.
Trailer do filme Precisamos Falar sobre o Kevin, de 2012
Postagem pela aluna: Ariane Menezes
Fontes: Blog Psicologia & Cinema. Martha Medeiros (O Globo). Jornal do Brasil- Filipe Quintans. Psicopatia- Sidney K. Shine.
Publicado: 07.03.2012 / 26/01/2012 / 2000
Edição: Ariane Menezes
Achei intenso a forma com a qual você descreve o filme, principalmente quando a mãe escuta um barulho mais "confortante que o choro do filho."
ResponderExcluirNunca assisti esse filme, mas comentado de forma tão crítica, instigou-me.
Muito bom!
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ResponderExcluirA psicopatia sempre se mostra um assunto intrigante. O que fazer com aqueles que biologicamente são diferenciados?! Eles não conseguem fazer laços de sentimentos com o outro. A satisfação do ego parece ser a única regra para uma mente psicopata.
ResponderExcluirAchei muito interessante. A autora do texto ela atrai você, e explana muito bem o conteúdo. Relacionando o filme com as teorias. Tá de Parabéns.
ResponderExcluirBiologicamente diferenciados?
ResponderExcluirSim, como Andreza mesmo discutiu em suas aulas.
ResponderExcluirEm uma pesquisa utilizando neuroimagem, os autores buscaram compreender quais seriam exatamente os fatores cerebrais que estariam associados à psicopatia. Nessa pesquisa, encontraram uma diminuição da matéria cinzenta na região pré-frontal, uma diminuição do volume do hipocampo posterior e um aumento da matéria branca do corpo caloso, diferenças estas que, segundo eles, contribuiriam para o aparecimento de comportamentos mais agressivos (MOLL; ESLINGER; SOUZA, 2001; PRIDMORE; CHAMBERS; MC ARTHUR, 2005).
Ainda são necessários estudos mais aprofundados em relação ao funcionamento cerebral, pois existem indicativos de que possa haver associação entre disfunção cerebral e comportamento agressivo ligado à psicopatia, mas ainda não existem dados definitivos a respeito.
Esse filme me causou um certo desconforto por se tratar de um vínculo inexistente entre mãe e filho. Não há sentimento, não há emoções. Só desprezo, arrogância, arrependimento, talvez. Kevin se tornou fruto das escolhas que a própria mãe fez, se tornou o reflexo de uma ignorância sem tamanho. É realmente um filme pra se ver mais de uma vez.
ResponderExcluirPsicopatia?
ResponderExcluirGeralmente ficamos horrorizados com as manchetes sensacionalistas reprisadas a exaustão sobre noticias em que os autores de crimes geralmente hediondos, são os ditos psicopatas ou sociopatas. Por falta de informação o senso comum repudia os laudos que determinam esta estrutura de personalidade . Muitas vezes é de fato difícil de acreditar na brutalidade com que estes sujeitos lidam com outros humanos, é preciso no entanto entender que diferente dos neuróticos os psicopatas ( perversos, em uma leitura psicanalítica) não sentem culpa. Transgridem a lei de forma natural como se nada tivessem feito. Cabe ainda salientar que nem todo psicopata é um serial killer ou assassino, eles simplesmente agem de acordo com suas necessidade, não pensam no que o outro possa vir a sentir. Portanto se o mais conveniente para o mesmo é um assassinato este não exitará consumar o ato.
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ResponderExcluirMeu prisma é psicanalítico, Samira.
ResponderExcluirNão os vejo como simplesmente seres biologicamente diferenciados, parece que ao usarmos esse termo nos limitamos ao pensamento "Isso é genético." Vai além, a medicina é um engodo que tenta reduzir tudo à fisiologia e ao cartesianismo, há estruturas psíquicas muito mais relevantes que uma diminuição da matéria cinzenta na região pré-frontal. Prender a psicopatia a esses termos é desconsiderar que ela está arraigada em experiências traumáticas edípicas e subjetivas.
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ResponderExcluirO ser humano é subjetivo Jakeline, o que nos faz ter noções e pensamentos diversificados. Você fala em prisma psicanalítico e eu enfoquei o biológico. Em momento algum, desconsiderei o pressuposto psicanalítico de Freud, apenas enfoquei mais uma visão, tantas vezes desconhecidas. Uma vez que não é apenas nas experiências vivenciadas o responsável pela existência da psicopatia. Não estamos aqui em uma competição (mesmo que alguns não compreendam isso), estamos sim, compartilhando conhecimento. Obrigada!
ResponderExcluirParabéns fico muito bom!
ResponderExcluirAcredito que somos um todo. Uma formação complexa entre o social, biológico e espiritual. A grande questão que fica é capacidade desses seres de acusarem dor. As pessoas ficam desoladas e encontros com esses vampiros. Principalmente na questão amorosa. São incapazes de gerar significados em suas relaçõs. O olhar dessas pessoas é apenas do útil. Uma vez li que violência é tirar a humanidade de uma pessoa, ou seja essa pessoa vira um objeto. Várias formas se retira se a humanidade de outro ser! Através do pensamento religioso, exemplo dos homens bombas etc. Mas esses seres eles ou nascem ou tem uma tendência anormal para ver o outro como objeto. Eu consigo matar uma barata, uma formiga pois esses seres são inconcebíveis a mim como semelhantes ou graus de aproximadamente, mas um gato uma pessoa normal não consegue pois esse se aproxima de em algum grau do nosso ser. Inconcebível machucar os meus iguais sem me machucar também. Mas esse seres parecem aliens o outro nunca se assemelha a eles. Por isso eles esmagam o outro como se fosse uma simples barata. Ótimo texto. Parabéns
ResponderExcluirAlguém pode me ajudar a definir as leis da gestalt nesse filme?
ResponderExcluirO filme precisa ser visto mais de uma vez, sem dúvidas. Importante para reflexão e principalmente para a prevenção, pois a família inteira precisava de ajuda de um especialista, etc. Que interessante... Procuro as leis da Gestald também neste filme, em 2021.
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